No
passado sábado à tarde (9 de junho), o historiador Daniel Bastos apresentou o
seu mais recente livro “Terras de Monte Longo” no Centro Português de
Fotografia (CPF).
A
obra, concebida a partir do espólio de um dos mais aclamados fotógrafos
portugueses da sua geração, José de Andrade (1927-2008), fotógrafo de
renome internacional, premiado e exposto em vários cantos do mundo, foi
apresentada no espaço da prestigiada instituição pública que assegura a
conservação, valorização e proteção legal do património fotográfico nacional, com
sede no Porto, no Edifício da antiga Cadeia da Relação.
A
apresentação da obra, uma edição trilingue traduzida para português, francês e
inglês com prefácio do conhecido fotógrafo
franco-haitiano que imortalizou a história da emigração portuguesa, Gérald
Bloncourt, esteve a cargo do ativista cultural
Joaquim Pinto da Silva, e contou com a presença simbólica de familiares do fotógrafo
José de Andrade, assim como do Diretor do CPF, Bernardino Castro.
No
decurso da sessão de apresentação integrada no Dia Internacional dos Arquivos, o
ativista cultural Joaquim Pinto da Silva, enalteceu
o percurso multifacetado em práticas e estudos trilhado pelo investigador
da nova geração de historiadores. Segundo
Joaquim Pinto da Silva, a nova obra concebida e realizada por Daniel Bastos assume-se
como um “livro de arte, à qual não se pode retirar o profundo sentido
histórico, sociológico e etnográfico. O “belo” está integrado umbilicalmente
com a sociedade e as pessoas que são fotografadas”.
Refira-se
que neste novo livro, realizado com o apoio do Centro Português de Fotografia, o
historiador minhoto, cujo percurso tem sido alicerçado das
Comunidades Portuguesas, esboça um retrato histórico conciso e ilustrado
do interior norte de Portugal em
meados dos anos 70.
Através de imagens até aqui inéditas, que José de
Andrade captou nessa época em povoados rurais entre o Minho e Trás-os-Montes, o
historiador e autor de livros sobre a emigração, aborda
as memórias do passado, não muito distante, do Portugal profundo e rural na transição da ditadura para a democracia,
um período fundamental da história contemporânea portuguesa, marcado por
décadas de carências, isolamento, condições de vida duras e incontáveis
episódios de emigração “a salto”.
Apresentação da
obra
Terras do Monte
Longo
de
José de Andrade
Centro Português
de Fotografia, Porto, 9 de Junho de 2018
Caro
Dr; Benardino castro, Director do CPF,
Caro
Daniel Bastos, meu amigo,
Comecemos
pelo principal, para isso aqui estamos: as fotografias e o representado.
O
país aqui patenteado, isto é, esta amostragem do país, interior norte, é para
muitos, sobretudo os mais novos, motivo de espanto.
Embora
ainda se possam ver traços aqui e ali deste modo de vida, pobre e arcaico, por
vezes no limiar da miséria, é verdade que muito se transformou e que hoje Monte
Longo e os seus similares apresentam-se-nos hoje com nova cara. Nem sempre
melhor, sobretudo a nível da desordem e da deselegância construtiva, mas claramente
em superação de um atraso que remonta a séculos.
Apercebemo-nos
que estamos perante instantâneos e não produtos laboratoriais e, mesmo,
acreditamos que são sobretudo primeiras e últimas tentativas as imagens que
Andrade nos dá.
“A paisagem portuguesa, a única realidade que hoje
vale a pena em Portugal“ (Torga).
Assim se produziu um livro de arte, à qual não se
pode retirar o profundo sentido histórico, sociológico e etnográfico. O “belo”
está integrado umbilicalmente com a sociedade e as pessoas que são
fotografadas.
Não
sentiu José de Andrade necessidade, à Cartier Bresson, de legendar as suas
imagens. Não viu utilidade em se explicar porque entendeu, e bem, que, neste
tipo de levantamento imagético social a peça continha tudo: os miúdos em
semi-pose desconfiada e curiosa, as mulheres e os homens no labor agrícola, ganha-pão
em desuso para nossa infelicidade, as protectoras croças das chuvas e neves que
nelas resvalam protegendo corpos, a romaria em fervor religioso, ainda não transmutadas
em outras adorações tecnocráticas, de “Iphone’s”, “Ipad’s” e as novas redes que
nos enredam como galinhas em galinheiros, os carros-de-boi apontando ao alto, hoje
inúteis e decorativos em vilas semi-abastadas, o cemitério num alto, mais
próximo do céu para onde queremos que os nossos transitem, as casas em granito
com acrescentos de madeira e telhados de colmo, que resistem ainda, o barbeiro
ecónomo, fazendo a barba e cortando cabelo na rua, a salvo das atalaias da
ASAE, os enormes rochedos plantados nas encostas por deuses esconsos e que
teimam em não sair, e por aí adiante.
Este
Minho interior, junto às Terras de Basto (não do Daniel, infelizmente), de
Guimarães, da Póvoa de Lanhoso, Felgueiras, terras-berço do que somos, é uma
região ímpar. Lê-se Camilo, Teixeira de Queiroz (de quem li o maior elogio
ao Minho em escrita que conheço), e, pasme-se!, de Raul Brandão, um conterrâneo
meu, que depois de provar o sal das tragédias da barra e do mar da Foz, da
Póvoa e de Leixões, veio afagar o seu talento para terras de Nespereira e de S.
Martinho Campo, em campos de Lanhoso, não tão longe de Monte Longo.
E
citemos os nossos para situarmos melhor este Longo Monte, que estando para cá
do Marão e do Alvão, e por isso ainda é minhoto, tem já em si muito do que para
lá se vive.
Acompanhemos
duas narrações; uma idílica, romântica, floreada, do grande Teixeira de
Queiroz (que vos citei há pouco) sobre o “aquém”:
“Ventos fortes obrigam as coroas dos pinheiros a inclinarem-se soluçantes;
os primeiros frios aconselham agasalhos; os nossos olhos magoados assistem, a
todo o instante, à morte de coisas que viveram; nos tugúrios dos pobres
acendem-se as primeiras fogueiras invernais. Já se ouve ao longe o grito ansioso
do cevado debatendo-se sob a faca do matador, subjugado pelos braços fortes de
homens sem coração que, vendo-o no estertor, lhe dizem facécias.
Começou o inverno. Tudo triste e sombrio: galhos estendidos sem folhas, nem
frutos; campos sem pão; os trovões a roncar irados das cristas dos montes; os
rios turbulentos saem dos leitos; já não sussurram ribeiros, já não gemem
fontes. Aquele ciciar de reza que estas leves águas falavam, é agora caudal
petulante d'algazarra. Não apetece, como no cálido Verão, abeirarmo-nos das
correntes frescas e límpidas, ouvir suas cantilenas, repousar perto, n'uma
preguiça anacreôntica. Tudo mudou: as tímidas donzelas toucadas de rosas que
eram as fontes, os alegres sátiros enfeitados de heras que eram os regatos,
transformaram-se em bandos de bêbedos e colarejas, golfando os insolentes
ralhos, que voem n'esta quadra dos rios. Nas serras altas, as agulhas das
penedias furam nuvens caliginas, os seus píncaros estão cobertos de neve. Da
manhã para a tarde, às vezes com sol, principiam a esvoaçar flocos, semelhantes
a pétalas miudinhas, e em poucas horas tudo aparece branco. São imensas toalhas
a corar, sobre o dorso de grandes dromedários. Parece que vamos assistir a uma
boda de gigantes, celebrada à face do céu infinito. No vale onde repousamos, o
frio aperta as carnes; dos braços nus dos carvalhos e das cerdeiras pendem
brincos d'água congelada, sente-se ao longe a imprecação da trovoada. É o Dezembro
áspero, o Natal doméstico, o aconchego da lareira, a coroa rezada em coro, o
estoirar das castanhas debaixo das cinzas.”
E agora a outra, do “para além” dos Montes, de Miguel Torga:
“Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo
falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume
invisível ordena:
- Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.”
E
numa sábia composição, moderada e tonalizada, destas duas descrições temos o
nosso Monte Longo.
E
Monte Longo, topónimo bonito, antigo como as trovas galegas nossas, desaparecido
com os arrebatamentos do liberalismo, no seu desvario normalizador, permanece
ainda nas memórias perenes das gentes e dos escritos. O Fafe moderno nasce no
século XIX, com ajuda dos nossos compatriotas torna-viagem, “os brasileiros”,
que o nosso amigo Daniel tão bem estudou, e que tão importantes foram nestas
terras. Mas o Fafe que hoje podemos ver, diferente ainda, nasce com o 25 de
Abril e o progresso subsequente que, inevitavelmente, destrói o Monte Longo de
José Andrade, por muitos resquícios sobrem aqui e ali de maneiras, hábitos e
paisagens.
O
repositório artístico, hoje - bem hajam, depositado aqui neste Centro Português
de Fotografia, desde 2009, é um testemunho histórico e de humanidade
insubstituível.
José Jorge Amaral de Andrade, nasceu em Santo Tirso em 1927.
De profissão era funcionário público, tesoureiro, nos Serviços Municipalizados
da Câmara Municipal de Santo Tirso.
Tem intervenção variada nas artes, quer na pintura, no
teatro, da escrita e na fotografia.
Começou a fotografar aos 20 anos de idade, despertando o seu
interesse nesta área através de um seu amigo, fotógrafo profissional, Manuel de
Sousa, que gostava de retratar pessoas.
Foi fundador do Grupo Fotográfico Efepontosete. Participou com as suas obras fotográficas em exposições e salões quer a nível nacional quer a nível internacional. Foi-lhe entregue a medalha de mérito cultural da cidade de Santo Tirso, em 2008.
Foi fundador do Grupo Fotográfico Efepontosete. Participou com as suas obras fotográficas em exposições e salões quer a nível nacional quer a nível internacional. Foi-lhe entregue a medalha de mérito cultural da cidade de Santo Tirso, em 2008.
Com 81 anos, morreu em 2008.
Conheço uma pérola literária do nosso fotógrafo que vou
partilhar convosco:
“Um caminhar sempre levanta o pó, mas o pó o vento leva-o,
não tarda, para outras paragens, com réquiens ou não. Mas a música que fica
ouvir-se-á sempre no silêncio das catedrais do amor ou da amizade, daqueles que
abrigaram nos seus corações o que é belo e honrado, enquanto caminheiros. Qundo
a alma se agiganta, sempre desperta um amanhecer festivo nos corações.”
Tenho pena de não ter conhecido José Andrade!
Saliento o profissional trabalho do Paulo Teixeira, que
acompanha de há muito o Daniel nas suas aventuras culturais plurilingues.
Competência e qualidade são atributos visíveis nos seus trabalhos.
Uma palavra ainda para o grande humanista Gérald Blancourt, o
prefaciador da obra, homem a quem Portugal deve a grande e profunda reportagem
do êxodo dos nossos compatriotas para França nos anos 60 do século XX. Nunca é
demais salientar a importância desse trabalho promovido também pelo Daniel
Bastos.
Para
situarem o trabalho de José Andrade no tempo e no lugar, nada melhor que lerem
a introdução do historiador Daniel Bastos que figura no livro.
O
Estado Novo de onde ele parte para explicar o culto piedoso da pobreza e da
simplicidade atávica que nos manietou, sobretudo à sociedade rural interior, de
forma a manterem-se práticas de trabalho e códigos sociais inabaláveis durante
décadas, enquanto o mundo se movia e as burguesias urbanas se modernizavam.
É
verdade que a Monarquia e a I República não fizeram muito melhor, mas pelo
menos não elegeram esse “modus vivendi” como modelo.
Ainda vivi um pouco esse atraso cultural sobretudo na minha infância em Paredes, hoje a 30 minutos do Porto, na altura a quase 3 horas.
Ainda vivi um pouco esse atraso cultural sobretudo na minha infância em Paredes, hoje a 30 minutos do Porto, na altura a quase 3 horas.
Daniel
Bastos prossegue num caminho que tenho acompanhado de há já bastante tempo –
tive oportunidade de organizar ou participar em sessões-conferências em
Bruxelas, em Paris e em Fafe.
Multifacetado
em práticas e estudos, Daniel tem perseverado em produzir trabalhos que o
honram e nos servem.
Leiam-no!
Obrigado
pela vossa atenção
Porto, Centro Português de Fotografia, 9 de Junho de
2018
Joaquim Ponto da Silva
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